terça-feira, 27 de abril de 2010

O FADO E O CARVALHO


(homenagem ao casal amigo de portugueses que veio brotar no Brasil...)

O FADO E O CARVALHO
Autor: Nilton Bustamante

Menino de tudo, toma o caminho traçado pelos anos, pelas ovelhas que são seu pão. Assim, segue com pouca roupa para o muito do frio. Algo invisível conspira para talhar o menino pastor que insiste na infância com as tarefas de gente adulta.

Observa as desgarradas com certa simpatia e contrariedade. Contrariedade pelo trabalho da busca, da recuperação; simpatia pelo atrevimento da liberdade. Seu espírito respira o trabalho solitário do campo, os ventos de corte, as pedras ornamentais, e o aprendizado em manter sob o controle algo que produz a riqueza, algo mais que dinheiro...

O ser humano brota nessa Terra bendita, como a semente que germina, com propósitos além do alcance do entendimento individual, além do alcance da percepção coletiva... Deus semeia maravilhosamente a vida e muitos nem desconfiam.

Nessa terra lusitana, Linhares, em Celorico da Beira, cede seus espaços para suas gentes, para esse menino que não entende, mas que já busca a luz de melhores dias, como os brotos que buscam a luz na plenitude da explosão da vida.

Esse menino, que insiste respirar infância mesclada com a responsabilidade da vida, viu seus pais deixarem de respirar a vida orgânica, a vida material, e partirem para nova morada, na Casa Celestial − O que conforta é saber que os filhos que foram sementes um dia sempre reencontram o Semeador Bendito −. Mas, pela tenra idade, os olhos desse menino logo passaram a procurar os pais nas estrelas, quem sabe se desgarrados pudessem riscar outro caminho, outro sinal, tão esperado, tão desejado para segui-los e terminar de vez com o abismo, com a rudeza da solidão. Mas o sinal não vem, e a dor não cabe toda no peito tão apertado.

Os céus de Linhares se estreitaram, a aldeia se apequenou, os anos chegaram, e com eles a insanidade dos homens, nesse mundo de dor, a Guerra que já era a Segunda, em nova contagem, pois a história já perdeu as contas, fizeram desse jovem, que não se permitia mais menino, prestar o atendimento à convocação militar na Ilha da Madeira. E dos altos rochedos vislumbrou a beleza do mar, caminho todo riscado por almas desgarradas. Caravelas, embarcações, navios, um sem-fim de aventuras na busca de um sonho melhor, deixaram suas marcas e nenhum mapa da certeza. E as juras desse jovem motivaram sua coragem de arriscar-se em nova jornada, pois o frio, a pouca roupa, as doídas pedras sobre os caminhos, as corridas atrás das ovelhas atrevidas, deixaram algo sedimentado nessa alma lusitana que queria crescer forte. Lançou-se para além-mar, veio para o Brasil.

O ser humano vive seus dias, e a Mão Invisível da vida atua.

Em terras também lusitanas, lá pelas bandas de Fiais da Telha, semente de Deus vem à vida, germina menina. Na lavoura, como que vivesse um fado, já experimentava a dor e os lamentos da época e suas condições. E aos cinco anos de idade, o destino a trouxe para além-mar, para o Brasil. Aprendeu a servir trabalhando no lar, atendendo no bar, só não servia a si mesma. Procurou encontrar o melhor de si para os seus serem felizes, pois o trabalho e dedicação não são desonra. Mas, a vida trouxe-lhe lágrimas que molharam o rosto infantil, e persistiram na feição juvenil; a rudeza intolerante do meio salgava e ressecava não os seus lábios, mas os sulcos da própria alma sofrida.

Tudo seguia seu curso, nessa sina de cada um. Do menino que crescia cada vez mais; da menina que se ressentia em seus fados até não aguentar mais.

E sem ao menos perceberem direito, lá vem a Mão Invisível juntar duas almas lusitanas, em terras distantes: O “pastor de ovelhas” encontra a “menina fadista”.

Aos efeitos do plano de Deus, duas naturezas, duas vidas, duas bagagens, duas sensibilidades, duas germinações, com novas oportunidades de auxiliarem-se para crescerem, para misturarem-se na busca da felicidade.

Trouxeram eles alguns reflexos do lugar de origem:

Fiais, pequenina povoação acrescentada por um largo e capela, encontram-se as "Pedras da Audiência", pesada mesa – banco tosco de pedra – lugar sagrado para a gente do local, onde velhos juízes em tempos imemoráveis ditavam sábias sentenças. Oliveira do Conde e Carregal do Sal, em Viseu, emprestaram à fadista: religiosidade, equilíbrio, senso de justiça e a alma desidratada onde todas as lágrimas não foram suficientes.

E, Linhares, Celorico da Beira, na medieval Guarda (mais conhecida como Garda), onde após derrotarem os mouros construíram temeroso e altíssimo castelo, ajudados pelos penhascos da Serra da Estrela, assim, emprestaram ao menino pastor: alma de guerreiro, destemor nas aventuranças, e contrapondo-se ao bélico as torres sineiras e delicados painéis de azulejos, doaram traços de emoção.

Novo brilho, nova esperança, alegria tomou-lhes conta. Duas almas lusitanas desgarradas começaram a riscar outros caminhos, atreviam-se em serem felizes. É verdade que, um ano após o matrimônio, a mãe da mulher fadista, foi fazer morada na Casa Celestial, e a felicidade ficou turva por um momento diante dos olhos que choraram a dor da perda, pelo menos assim é que se entendia.

O homem que um dia foi pastor, possui a alma grande, talvez por conta da Serra da Estrela que o fez sentir-se próximo do céu, começou a germinar tijolos e mais tijolos. Como a vida foi-lhe corrida, não houve tempo para os estudos escolares, sem saber ler ou escrever sua maior professora foi mesmo a vida, ensinou-lhe que o homem é o senhor de seu próprio destino, e coube somente a ele a decisão de enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades. Riscou seus sonhos no papel, de seu jeito, de sua maneira, sem se preocupar com os olhos alheios, pois sabia ele que vislumbrava diante de si a edificação da solidez de seus dias. E disse ele: “Faça-se uma edificação.” E após muito suor e trabalho uma edificação foi feita. E disse mais: “Faça-se outra.” E após muitos outros suores e trabalho outra edificação foi feita, pois ele era senhor de seus sonhos e vontade.

E a mulher que sempre foi fadista, espiritualizou-se, poetizou, também ansiou o futuro melhor para os filhos, que simbolizam em seu coração nomes de árvores.

Esse casal, que recebeu a bênção da Mão Invisível, cresceu em sua humanidade. O pastor que lutou duro, mas no fundo manteve a emoção e um traço da solidão do campo, tornou-se “carvalho”, pois foi o meio que soube para sobreviver à batalha da vida; e a menina que cresceu lavoura e de avental, tornou-se definitivamente uma fadista, pois só canta o bom fado, quem sofre ou sofreu.

Os opostos se completam.

Etelvina Ferreira Lopes Veloso, canta sem receios ao mundo sua paixão na sombra e robustez do “carvalho”; e Francisco Veloso, nutre-se – algumas vezes sem ao menos perceber − com a delicadeza e espiritualidade da boa “fadista”. Um veio dar sentido à vida do outro. Brotaram com suas características e finalidades. Brotaram à vida. E souberam o sol do amor.

No sonho encantado que o poeta “viveu” ao escrever emocionado esse texto, a íntima voz, sábia, lhe disse:

“ − Veja o que acaba de escrever sobre essas duas almas que se amam e que desgarradas se encontraram em terras distantes para formarem sua melhor história. Ainda que não possuíssem domínio sobre as letras, emprestaram vida, força, sentido e impulso aos ventos poéticos desse texto. E quantos doutores de ciências, de vidas sem sentido, sem força, sem qualidade, sem poder movimentar poesias, fadados ao vazio poético, Oh! isso sim, triste sina !”

E o poeta concordou: melhor que escrever poesia é ser motivo para a poesia existir. É ser bom espelho para os filhos, para os amigos, para todos ao redor. Ainda que estejamos em um mundo material, de necessidades físicas, é bom lembrar o que já foi dito por alguém:

”As melhores coisas da vida não são as coisas.“

E assim, o poeta concluiu, emocionado, sobre essas duas almas lusitanas, o sentido maior que elas deixaram nesse longo caminho de trilhas nunca dantes palmilhadas:

Das Mãos de Deus, o “fado” e o “carvalho”, brotaram para o amor.

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Fado: Água e Mel
https://www.youtube.com/watch?v=fngp39nXKhk

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