QUANDO EU MORRI DA
ÚLTIMA VEZ
Autor: Nilton
Bustamante (em desdobramento de alma)
Quando eu morri da última vez vários foram os choros que
ouvi...
Sim, digo assim que morri porque não me lembro nada semelhante
a isso.
Eu sei que morri, estou morto. Isso é certo, constatado. Mas também é
certo que estou vivo.
É algo que eu não sei dizer, ou explicar muito mais o que
está acontecendo, somente que é um vazio que não aguento, não suporto a agonia
de passar pelo espelho e nem mesmo eu pra me consolar...
A falta de carinho, de
amor, é a mesma que eu não oferecia, não distinguia a ninguém. E a solidão me
corrói, tira pedaços e cada vez sobra menos de mim.
Quando eu morri da última vez vários foram os chamados que
ouvi...
Alguns eram, de certa forma, conhecidos por mim. Acusavam-me!
Outros, parecia suave música, delicadas luzes trazidas por mãos atentas entregavam-me
sem nada dizer, nem mesmo o porquê. Como poderiam ser tantas ondas diferentes
em minha direção, tantas vibrações? Tenho comigo que estou sem precisar de
ninguém?! Eu já tinha o meu vazio, esse vazio que não me deixa, que me torna em íntima
porção de qualquer coisa diante do abismo que se agiganta e se aproxima cada
vez mais e mais.
Pelos céus que há sobre a cruz, o que será de mim?
Meus irmãos e meus pais, são imagens que estão distantes,
longe, muito longe, cada vez menos nos olhos das saudades... Cada vez lembro-me
menos, cada vez sinto menos, cada vez o triste, esse medo de tudo. Eu não deveria
estar assim, já que morri, já que nada deveria mais me perturbar. Deveria me
sentir livre, desapegado a tudo que me fez e faz sofrer. Mas, não é assim, a
dor agora é mais aguda, a dor agora mais sentida e profunda...
Será o purgatório, sanatório, auditório de mim mesmo, onde
estou afinal?
Quero tanto ser observado, ser notado, ser comentado nas
bocas dos mundos e das tribos com seus espelhos e apetrechos. Quero que me vejam,
que me solicitem, preciso sentir parte de algo, de alguém... Ai, mas esse labirinto
que me enfiei em tudo tem minha imagem, minha semelhança em todo lugar impregnado
de algo que parece eu pedindo esmola para mim mesmo, em cada imagem que surge
do nada brota algo congelado no tempo mas sou eu fechando portas, uma a uma,
todas as portas e janelas, sem querer falar com ninguém, sem querer saber de
nada, coisa alguma, nem de Deus. Isso me assusta. Começo a escorregar no nada
e no nada tento me agarrar, nalguma coisa que a providência quem sabe possa
enviar, mas o vazio, ai esse vazio... Minhas unhas estão apodrecidas, fracas,
não deixam nem marcas, e a dor faz eu descer mais e mais... Onde será esse
lugar? O que será de mim?
Ouço risadas, ouço frases que doem.
Eu sei, algo em mim diz
que são mesmo verdades. Fiz muitas coisas que não deveria. Fiz e fiz, pobre de
mim! Tirei o sono de muita gente, e agora quem não consegue dormir sou eu. Essas
mesmas pessoas agora são bocas que gritam, são dedos que me apontam, e o réu
sou eu, sou eu que não consegue mais ter paz. Alguém precisa me explicar isso:
Apareceu alguém de toga me escarnecendo a consciência, e sou eu em mim mesmo me
acusando. Como pode ser?
Outro dia, em outro momento, um bando de mau intencionados
tentou me enganar. Zombaram-me aqueles quem eu mal conseguia encarar – e o
conseguiram. Levaram-me por um caminho para eu passar, ir de vez, só que eu não
contava que tudo era armação, acabei em um lugar sem saída. Muitos instrumentos
de tortura me aguardavam nas mãos que servem aos assassinos e carrascos. Percebi
o que me aguardava. Terrível destino. Perdido por perdido, comecei a orar,
fiquei mais forte e consegui me desvencilhar, escapar.
Quando eu morri da última vez não foi assim, deve mesmo ter sido tudo diferente.
Agora está tudo confuso. Não há nem um vale, ou montanha para eu falar com meu
eco. É muito desconsolador ver o próprio corpo se desfazendo, sendo a festa de
tantos vermes. E não passa ninguém para eu pedir uma bendita ajuda. Só vejo eu
mesmo passando e não parando, não dando a mínima atenção pra mim. Estou cansado
desse que fui – ou que ainda sou? – não tem a mínima piedade, não se preocupa
com nada. Somente com o que precisa vestir, comer, mostrar, abocanhar a
desatenção alheia e tirar algum proveito, mesmo para sair na mesma foto, no
mesmo foco de um sucesso que não serve pra nada.
Agora percebo, agora sei.
Eu acho que há muito deixei de me amar...
Espere, estou ouvindo cânticos... Parece procissão que se aproxima... Alguém me
chama pelo nome. Ai, essa loucura que é a imaginação?! Estão vindo em minha
direção. São senhoras em suaves mantos, fazem orações. Sobre o cortejo
delicada chuva de luzes se espalha por onde passa. São todas de semblantes
idôneos, gente que o Bem é selo, é marca. Eu sei, eu sinto, eu vejo
assim... Não me acusam de nada, não me
perseguem, não me condenam. Pararam diante de mim. Aquela fina chuva iluminada
está agora me cercando, tocando o que sei ser parte do que sou. Oram para
Jesus. Oram para Maria mãe do Nazareno, oram pelo Pai, oram por mim... Deixo
escapar um “Graças a Deus!” e essas luzes agora são pétalas aveludadas que
tocam meu coração e repõem a minha carne, meu sangue, minha vitalidade... A
vida que estava esquecida em minhas observações agora se mostra cada vez mais
forte, pulsante. Observo minha pele a ficar da mesma forma, aveludada,
regenerada, e uma emoção me faz tocar o chão agora sem nada a me doer, sem mais
nada a me incomodar. Sobre minha cabeça, bem ao alto, uma abóboda se mostra e
parte dos céus que nunca vi. Um azulado suave e metálico sustenta estrelas com
brilhos que entram no mais íntimo do meu ser. Estou em uma missa, coisa que
não sei explicar como isso foi acontecer. Uma senhora se aproxima, quase
desfaleço: minha mãe! Sorri com delicadeza, mostra-me uma direção, enquanto uma
oração se torna a mais linda canção em meus ouvidos, em meu coração.
Aquelas imagens que mostravam-me em atos duvidosos, em pertinaz egoísmo algumas
vezes, em outras a vaidade descabida causando o aprofundamento da solidão,
agora estão se desfazendo diante de mim. Vejo que as chagas que meu espírito
sangrou foi tudo o que cometi contra a minha felicidade, a felicidade que
deveria ser de quem vive simplesmente com amor. O amor por outrem sem ter
nenhuma recompensa a esperar ou outro interesse pessoal por atender...
Quando eu realmente morri da última vez, morri a cada vez
que fui egoísta, sarcástico, viciado em todos os males que me escravizaram, em
todas as fogueiras da vaidade que me queimei em invisível fogo dos infernos que
criei, em toda vez que atropelei o sentimento de alguém, quando descuidei de
minha saúde mental, orgânica e moral, quando me afastei da fonte da vida: Deus.
A separação que fiz de mim para comigo mesmo, foi a origem do pânico, depressão,
desilusão, sofrimento sem cabimento. Eu culpei ao mundo pelo sofrimento que
amarguei, mas sempre fui o verdadeiro responsável. Agora eu percebo que sou o
senhor da minha felicidade ou infelicidade, que a escolha é sempre minha, o
tempo todo.
E por falar em senhor...
Senhores em imponentes cavalos − lembram o tempo
antigo, o tempo das lanças e espadas −, cavalgam com o estandarte adiante de
todos. Agora me guardam, protegem e me acompanham para minha nova jornada. Sigo
em paz, feliz, aliviado. Minha mãe me acompanha. Aquela procissão das bem
aventuradas senhoras fica para trás, mas sem antes pelo caminho se felicitarem
por cada um que se reergue e avança em direção a Deus, como todos os seres que seguem
em direção ao Sol.
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