quinta-feira, 2 de maio de 2013

QUANDO EU MORRI DA ÚLTIMA VEZ

QUANDO EU MORRI DA ÚLTIMA VEZ
  Autor: Nilton Bustamante (em desdobramento de alma)

Quando eu morri da última vez vários foram os choros que ouvi...
Sim, digo assim que morri porque não me lembro nada semelhante a isso.
Eu sei que morri, estou morto. Isso é certo, constatado. Mas também é certo que estou vivo.
É algo que eu não sei dizer, ou explicar muito mais o que está acontecendo, somente que é um vazio que não aguento, não suporto a agonia de passar pelo espelho e nem mesmo eu pra me consolar...
A falta de carinho, de amor, é a mesma que eu não oferecia, não distinguia a ninguém. E a solidão me corrói, tira pedaços e cada vez sobra menos de mim.

Quando eu morri da última vez vários foram os chamados que ouvi...
Alguns eram, de certa forma, conhecidos por mim. Acusavam-me! Outros, parecia suave música, delicadas luzes trazidas por mãos atentas entregavam-me sem nada dizer, nem mesmo o porquê. Como poderiam ser tantas ondas diferentes em minha direção, tantas vibrações? Tenho comigo que estou sem precisar de ninguém?! Eu já tinha o meu vazio, esse vazio que não me deixa, que me torna em íntima porção de qualquer coisa diante do abismo que se agiganta e se aproxima cada vez mais e mais.

Pelos céus que há sobre a cruz, o que será de mim?

Meus irmãos e meus pais, são imagens que estão distantes, longe, muito longe, cada vez menos nos olhos das saudades... Cada vez lembro-me menos, cada vez sinto menos, cada vez o triste, esse medo de tudo. Eu não deveria estar assim, já que morri, já que nada deveria mais me perturbar. Deveria me sentir livre, desapegado a tudo que me fez e faz sofrer. Mas, não é assim, a dor agora é mais aguda, a dor agora mais sentida e profunda...

Será o purgatório, sanatório, auditório de mim mesmo, onde estou afinal?

Quero tanto ser observado, ser notado, ser comentado nas bocas dos mundos e das tribos com seus espelhos e apetrechos. Quero que me vejam, que me solicitem, preciso sentir parte de algo, de alguém... Ai, mas esse labirinto que me enfiei em tudo tem minha imagem, minha semelhança em todo lugar impregnado de algo que parece eu pedindo esmola para mim mesmo, em cada imagem que surge do nada brota algo congelado no tempo mas sou eu fechando portas, uma a uma, todas as portas e janelas, sem querer falar com ninguém, sem querer saber de nada, coisa alguma, nem de Deus. Isso me assusta. Começo a escorregar no nada e no nada tento me agarrar, nalguma coisa que a providência quem sabe possa enviar, mas o vazio, ai esse vazio... Minhas unhas estão apodrecidas, fracas, não deixam nem marcas, e a dor faz eu descer mais e mais... Onde será esse lugar? O que será de mim?

Ouço risadas, ouço frases que doem.

Eu sei, algo em mim diz que são mesmo verdades. Fiz muitas coisas que não deveria. Fiz e fiz, pobre de mim! Tirei o sono de muita gente, e agora quem não consegue dormir sou eu. Essas mesmas pessoas agora são bocas que gritam, são dedos que me apontam, e o réu sou eu, sou eu que não consegue mais ter paz. Alguém precisa me explicar isso: Apareceu alguém de toga me escarnecendo a consciência, e sou eu em mim mesmo me acusando. Como pode ser?

Outro dia, em outro momento, um bando de mau intencionados tentou me enganar. Zombaram-me aqueles quem eu mal conseguia encarar – e o conseguiram. Levaram-me por um caminho para eu passar, ir de vez, só que eu não contava que tudo era armação, acabei em um lugar sem saída. Muitos instrumentos de tortura me aguardavam nas mãos que servem aos assassinos e carrascos. Percebi o que me aguardava. Terrível destino. Perdido por perdido, comecei a orar, fiquei mais forte e consegui me desvencilhar, escapar.

Quando eu morri da última vez não foi assim, deve mesmo ter sido tudo diferente. Agora está tudo confuso. Não há nem um vale, ou montanha para eu falar com meu eco. É muito desconsolador ver o próprio corpo se desfazendo, sendo a festa de tantos vermes. E não passa ninguém para eu pedir uma bendita ajuda. Só vejo eu mesmo passando e não parando, não dando a mínima atenção pra mim. Estou cansado desse que fui – ou que ainda sou? – não tem a mínima piedade, não se preocupa com nada. Somente com o que precisa vestir, comer, mostrar, abocanhar a desatenção alheia e tirar algum proveito, mesmo para sair na mesma foto, no mesmo foco de um sucesso que não serve pra nada.
Agora percebo, agora sei.

Eu acho que há muito deixei de me amar...

Espere, estou ouvindo cânticos... Parece procissão que se aproxima... Alguém me chama pelo nome. Ai, essa loucura que é a imaginação?! Estão vindo em minha direção. São senhoras em suaves mantos, fazem orações. Sobre o cortejo delicada chuva de luzes se espalha por onde passa. São todas de semblantes idôneos, gente que o Bem é selo, é marca. Eu sei, eu sinto, eu vejo assim...  Não me acusam de nada, não me perseguem, não me condenam. Pararam diante de mim. Aquela fina chuva iluminada está agora me cercando, tocando o que sei ser parte do que sou. Oram para Jesus. Oram para Maria mãe do Nazareno, oram pelo Pai, oram por mim... Deixo escapar um “Graças a Deus!” e essas luzes agora são pétalas aveludadas que tocam meu coração e repõem a minha carne, meu sangue, minha vitalidade... A vida que estava esquecida em minhas observações agora se mostra cada vez mais forte, pulsante. Observo minha pele a ficar da mesma forma, aveludada, regenerada, e uma emoção me faz tocar o chão agora sem nada a me doer, sem mais nada a me incomodar. Sobre minha cabeça, bem ao alto, uma abóboda se mostra e parte dos céus que nunca vi. Um azulado suave e metálico sustenta estrelas com brilhos que entram no mais íntimo do meu ser. Estou em uma missa, coisa que não sei explicar como isso foi acontecer. Uma senhora se aproxima, quase desfaleço: minha mãe! Sorri com delicadeza, mostra-me uma direção, enquanto uma oração se torna a mais linda canção em meus ouvidos, em meu coração.

Aquelas imagens que mostravam-me em atos duvidosos, em pertinaz egoísmo algumas vezes, em outras a vaidade descabida causando o aprofundamento da solidão, agora estão se desfazendo diante de mim. Vejo que as chagas que meu espírito sangrou foi tudo o que cometi contra a minha felicidade, a felicidade que deveria ser de quem vive simplesmente com amor. O amor por outrem sem ter nenhuma recompensa a esperar ou outro interesse pessoal por atender...

Quando eu realmente morri da última vez, morri a cada vez que fui egoísta, sarcástico, viciado em todos os males que me escravizaram, em todas as fogueiras da vaidade que me queimei em invisível fogo dos infernos que criei, em toda vez que atropelei o sentimento de alguém, quando descuidei de minha saúde mental, orgânica e moral, quando me afastei da fonte da vida: Deus.
A separação que fiz de mim para comigo mesmo, foi a origem do pânico, depressão, desilusão, sofrimento sem cabimento. Eu culpei ao mundo pelo sofrimento que amarguei, mas sempre fui o verdadeiro responsável. Agora eu percebo que sou o senhor da minha felicidade ou infelicidade, que a escolha é sempre minha, o tempo todo.

E por falar em senhor...

Senhores em imponentes cavalos − lembram o tempo antigo, o tempo das lanças e espadas −, cavalgam com o estandarte adiante de todos. Agora me guardam, protegem e me acompanham para minha nova jornada. Sigo em paz, feliz, aliviado. Minha mãe me acompanha. Aquela procissão das bem aventuradas senhoras fica para trás, mas sem antes pelo caminho se felicitarem por cada um que se reergue e avança em direção a Deus, como todos os seres que seguem em direção ao Sol.


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http://www.youtube.com/watch?v=Tklu8OqJwYI
Christus factus est pro nobis | Joaquim dos Santos | Música Sacra


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