sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

ANIVERSÁRIO

O homem velho solitário - Vincent Van Gogh



ANIVERSÁRIO
Nilton Bustamante

            Um velho senhor arrasta os pés em direção ao portão de sua casa. Difícil definir-lhe a idade. O seu aspecto senil parece resultar mais de maus tratos do que da idade. Ao peso que arca seus ombros alia-se a desmotivação.
            Passos e mais passos, sonolentos.
            O portão do pequeno quintal de entrada era do outro lado do mundo. Em silêncio reprovador, ouve o funcionário dos Correios com uma entrega nas mãos. Não reage. Não sente um mínimo de curiosidade. Nada mais neste mundo lhe interessa. Assina o recibo. Não responde ao agradecimento do carteiro. Mórbido, leva para dentro de casa uma pequena caixa. Um pouco pesada até. Pragueja. Não procura nem mesmo saber o remetente. Colocou o embrulho em cima da mesa da sala. Sentou-se e ficou ali, fitando sua visita. Na certa não recebia alguém, ou alguma coisa, o que quer que seja, há muito. O que se passava em sua cabeça, afinal?
            Sua casa, um grande cômodo, aos moldes de um loft, porém sem intenção arquitetônica. Apenas uma casualidade.
            Levantou-se. Foi até a pia - do que parecia ser a cozinha - e encheu, lentamente, um copo grande com água, sem, contudo, tirar os olhos, agora mais cuidadosos, sobre a pequena caixa. O velho, aparentemente de alma deserta, boca seca, secou junto até a última gota sem perceber. Ficou novamente sentado, com o copo vazio na mão, trêmula, olhando o intruso objeto, ou olhando o vazio. Quem sabe?
            Era um homem só e solitário. Sem amigos ou vizinhos que se importassem. A casa limpa de lembranças. Sem fotos. Sem memória. Parentes próximos não os tinham, ao que se sabia. Um cachorro tão velho quanto o dono; mal enxergava. Dormia profundamente, naquele momento, na única poltrona. O homem colocou as mãos apoiando as têmporas, vigiando o embrulho por longos minutos, com a cabeça pesada. Aquele acontecimento tumultuou o seu dia. Ele não se lembrava de nada de extraordinário que modificasse a inércia de seus dias, dos últimos anos.
            Tudo muito sem vida. Esperar a visita da morte, era a única rotina do dia-a-dia.
            Pegou seu canivete sem fio, e começou a despelar, folha por folha, camada por camada.
            Aquilo lhe deu um certo prazer. Papel de embrulho retalhado, logo depois folhas de jornal, e, como última epiderme, uma linda folha de papel de presente. Abriu a caixa com alguma delicadeza, e, agora, já com curiosidade mais evidente.
            Ao projetar sua visão sobre o conteúdo, suas pupilas cresceram em larga surpresa.
            Uma lápide.
            Sim, uma lápide. Não uma qualquer, mas, ao que parecia, a sua própria. Era de mármore, na forma de um quadrado de dois palmos, com espessura de poucos centímetros. Havia sua foto em estilo oval; inscritos o seu nome completo, data de nascimento – aquele súbito desassossego fez-lhe lembrar, afinal, que era dia de seu aniversário. Quanto anos mesmo?, pensou sem emoção alguma – e, por fim, a inscrição da data de sua morte. Mecanicamente, olhou para o calendário pendurado na parede à sua frente; constatou que a data de seu passamento indicada na lápide realmente coincidia dia, mês e ano com o instante que estava vivendo aquele absurdo.
            Incômodo tomou-lhe, de súbito, a alma. Um barulho na maçaneta envelhecida e malcuidada da porta de entrada da sala fez acordar o cão que dormia – pela aparência de minutos atrás, esparramado no seu melhor sono. Seus latidos eram firmes. Persistentes. Apesar de quase cego, seu instinto deixou-o alerta ao extremo contra algo, ou alguém, por detrás da porta. O velho colocou a lápide sobre a mesa, fitando ao mesmo tempo a maçaneta que girava disfarçadamente; segundos intermináveis, ruídos amplificados pela tensão.
            O velho coloca suas mãos ainda trêmulas sobre a mesa.
            O cão ensaia alguns passos de ataque.
            A porta, por fim, fica entreaberta.
            O velho senhor engole seco mais uma vez, olha arregalado em direção de alguém que se aproxima. O invasor chega lentamente, sem precipitação alguma. Quando bem próximo do homem velho sentado à mesa, o sinistro mostra-lhe a face. Em uma das mãos carrega um punhal e na outra um revólver. Com extrema lentidão, olhos nos olhos, assinala ao velho solitário, em linguagem muda, para uma e outra arma, dando a entender que era uma escolha a ser feita. Pavorosa escolha. O velho senhor, com as mãos ainda grudadas sobre a mesa, num esforço terrível, quase sem forças, entende a deixa, aponta com a cabeça na direção do revólver. O intruso aproxima-se mais e mais. O cachorro enlouquece de vez, mas sem coragem suficiente de tentar alguma investida mais decisiva e agressiva. Sem se importar com o cão, o visitante rosquea com delicadeza, quase de forma carinhosa, um silenciador na arma de fogo, volta por volta, sem barulho, sem tirar o olhar congelante de cima da presa sem ação.
            Ouve-se um som seco, e secamente cai o velho corpo ao chão, sem vida.
O cão em um lamento esganiçado deita-se ao lado de seu dono, sem saber o que lhe espera...

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