terça-feira, 27 de março de 2012



O MENINO, A FLAUTA, O GATO E O HOMEM DA MOTONETA

Autor: Nilton Bustamante

Uma rua. Essa diferente. O que tem de igual às outras é a mesma condição surrada pelo tempo. Segue desde feita a mesma situação. Calçadas que muitos não sabem se ficam ou se vão... Mas, essa é diferente, ah, se é!

Uma rua, outro planeta. De tudo há somente três seres: o menino com a flauta, o gato que espia e o homem que se vai caminho acima em sua lambreta, ou será motocicleta, ou motoneta, sabe-se lá?  Parece que nesse planeta há essa única rua surrada pelo tempo que segue a mesma direção talvez para não se perder... Mas, essa rua – vejo – não é uma qualquer, é mesmo diferente.  Na casa antiga, degraus altos, pintura desbotada – mas, quem se importa? –, dá tão bem pro menino sentar-se no trono, último degrau, pés descalços, calças enroladas até aos joelhos pra entrar na lama, se afundar no barro, sentir a liberdade da terra e da água, a cócega das asas nos pés pra correr, voar, cada vez mais quando quiser, quando sentir vontade pra ir até aonde der...

O gato, ah, sim, o gato, preto na parte de cima, branco na parte debaixo. Nas patas e na calda escorrem o resto do preto. Olhos e ouvidos atentos. Ah, como gosta de música esse felino! Não tira a atenção do menino, que toca, sente o doce gemido da flauta, algo vindo lá do fundo do fundo do fundo do coração, tão simples, tão reto, tão sincero, tão repleto com tanta água, com tanto barro, a mesma liberdade, a mesma forma do voo dos pássaros, o mesmo céu sem chapéu...

Será que esse bichano está hipnotizado? Tudo parou, tudo está parado. Estagnado. Parece fotografia, tela de quadro, fantasia sem parede, sem retângulo, nem quadrado... O menino toca e o tempo para. Ai, eu parei. Eu não consigo tirar mais os meus olhos de cima desse menino, desse gato, e do homem que se vai com sua motoneta. Se essa calçada fosse um passo a menos, talvez eu conseguisse colocar os meus pés, aí seríamos 4 − pensando melhor acho que não caberíamos, seríamos muitos, excesso de contingente, lotação , confusão, melhor não, melhor ficar aqui esticando meus ouvidos pro menino com sua flauta mágica, ficar mais perto, sentir daqui, ficar na zona do agrião, ficar quietinho sem atrapalhar essa emoção...

Pergunto, onde estarão as outras pessoas? Quem cuida dessas casas? Quem varre essa rua? Quem dá comida pro menino e pro gato? Quem lava essas roupas marcadas de barro? Quem deu a flauta mágica com o doce das notas pro menino? Devem ser outras pessoas que foram pra um planeta distante... Voltam quando o menino já estiver dormindo, quando já for noite. Acho que foram pra longe, trabalhar, buscar o leite, trazer o pão.

Ah, esse menino não atirou o pau no gato, fez melhor, muito melhor: o pau virou flauta, notas doces, ficou mágica...

Nossa, será isso mesmo?! Sabe o que pensei, o que imaginei? Será que pode ser?...

Ah, esse felino é danado, é mesmo esperto, sabichão! Agora percebo o que esse gato sem botas, preto na parte de cima, branco na parte debaixo, nas patas e na calda escorrendo o que sobra do preto, olhos e ouvidos atentos, bichano 7 vidas, vê com seus olhos telescópios: aquelas águas e barro dentro do coração do menino é excesso de material divino que o Criador deixou. Ficou por isso mesmo. Um presente. Só pro menino ser diferente, alegrar a solidão dessa rua, que tem de igual às outras de outros cantos, de outros lugares, a mesma condição surrada pelo tempo, seguindo desde feita a mesma direção pra não se perder, calçadas que muitos não sabem se ficam ou se vão... Mas, essa rua, tem mesmo um quê de diferente, tem o menino com a flauta, o gato, e o homem que se vai caminho acima em sua motoneta... E eu aqui ouvindo, ouvindo, ouvindo o doce da canção, querendo colocar meus pés nas águas e no barro, quem sabe alguma cócega, algumas asas nos meus pés, sair deste chão?

Vou à janela e olho pra minha rua... Parece que ouvi... voz de menino.


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"La notte", Vivaldi”
http://www.youtube.com/watch?v=qnIB_BDPU_w&




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