domingo, 19 de setembro de 2010

UMA MULHER CHAMADA SOPHIA


UMA MULHER CHAMADA SOPHIA
  Nilton Bustamante

Uma voz contida, inaudível, com medo, pede silêncio.
Corpos rastejam sobre chão úmido e gelado. Neve e mais neve na noite mais escura de todas as noites até então.

Um corpo após outro feito bichos que se escondem de seus predadores, tampam as respirações para o ar quente de suas narinas não os denunciem. Homens, mulheres agarradas às suas crianças com os corações assustados, batendo acelerados, pensando, rezando, implorando, enlouquecidas, num transe que não sabiam mais se era realidade ou pesadelo, um sonho sem graça que a vida estava querendo impor com inaceitável negro humor...

O perigo no ar.

Soldados com sede de sangue por todo o lugar.

Famílias inteiras fogem. Novos e velhos. Uns querendo ficar, já sem forças, querendo encontrar logo a morte. Para que tudo seja breve. Filhos, netos, pais, avôs e avós, não podiam nem chorar, nem se despedir. Toda perseguição, todo extermínio, toda guerra sempre tudo muito cruel.

Todas as guerras são cruéis.

Por mais que tentem explicar, não há como entender como a Humanidade ainda aceita tamanha desarmonia e confronto contra a inteligência, razão e sentimentos minimamente humanizados. Como poder ir à guerra, matando a própria mãe, o próprio pai, o próprio irmão, a própria irmã, a própria mulher, o próprio marido, o próprio filho, a própria filha, os vizinhos, os amigos, os desconhecidos de uma mesma espécie?

A cada bala que mata, a cada faca que mata, a cada bomba que mata, mata cada dia, cada tarde, cada manhã que foram de amor, em relativa paz. Como pode assim matar todos os pais, todas as mães, todos os pássaros, todos os cães? Mais que matar a vida, mata-se a dignidade humana!

Esse grupo de pessoas fugia da Rússia que se ensanguentava em perseguição infindável. Judeus que eram, iam na busca de salvarem a própria pele, tinham a Alemanha como refúgio, como destino.

Ainda era antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial.

Conseguiram subornar um funcionário da estação de trem, vagões de carga carregavam animais vivos. E lá se misturara essa gente semi-morta. Teria que passar por tantas cidades, estações, fronteiras...

O que poderia acontecer?

A sujeira, a lama extremamente molhada, gelada, o nervosismo dos animais não deixam ninguém se acomodar direito, nem um momento de descanso, de paz. Mas, assim, que o trem começa a se movimentar pode-se sentir o alívio pelo ar dos homens-bichos. Aumentava a chance de se afastarem do ameaçador matadouro. Uma pessoa desse grupo, uma jovem mulher nos últimos momentos de gravidez, carrega sua barriga endurecida de medo, fome e frio.

Pensa no sofrimento do filho que ainda nem nasceu e já sofre os medos do mundo. A adrenalina toda da fuga, o esforço físico, faz-se precipitar o rompimento da bolsa e a água vai abaixo, mostrando que era chegado o momento tão esperado – a vida veio da água –, mas, não podia imaginar que seria assim, dessa maneira, tão duro e desumano.

A jovem em pé,  com as mãos amarradas no teto do vagão para se equilibrar, pois não tinha espaço nem pra deitar-se, mordia os lábios, as dores rasgando-a em duas, pelo meio, já nem mais sentia o chacoalhar do vagão, já nem mais percebia o estado crítico da situação, nem o incômodo das fezes e estrumes, somente queria com todas as suas forças e concentração expulsar o rebento da prisão, da toca, para poder ter a chance de fugir, sumir, uma chance à vida, a vida do filho tão esperado e já amado... E a criança procurou não dar trabalho, parece que sabia de tudo, ajudou, caiu lentamente nas mãos em conchas do pai que o aguardava como uma benção que cai do céu.

Tiras do vestido da jovem mãe faziam as vezes de toalhas e panos. Pai e mãe juntavam o bebê entre eles para o aquecerem. E eram quilômetros e quilômetros de fome, frio e medo. Nas paradas, metiam pedaços de tecidos molhados de saliva e colocavam na boca da criança para não fazer barulho, para ninguém ouvir lá de fora, para não serem encontrados e mortos.

Semanas e semanas, andando depois pelos lugares que não tinham estradas, pelos bosques, sempre à noite, dormindo quando nos melhores dias, debaixo de pontes, e das cinco batatas do dia que fugiram da Rússia, quando chegaram à Alemanha, ainda tinham meia batata chupada ao máximo da exaustão, cansaço. Nem acreditam, mas conseguiram chegar ao destino.

A primeira cidadela alemã os recebeu sem muitos problemas.

Seguiram pelo mapa de seus corações e acabaram encontrando um parente, também judeu que lhes informou que o clima já não era mais tão amistoso naquela Alemanha, havia mudanças acontecendo, havia expectativa desagradável no ar, com Hitler que acabara de assumir o poder...

E logo mais, antes que o castigo de uma época lançasse a grande guerra, a jovem mãe, filho e marido conseguem fugir. E as novas perseguições começam. As mesmas histórias conhecidas agora por outras línguas.

Dois irmãos da jovem mulher são mortos.

A sofrida família, sempre unida, consegue fugir da Alemanha Nazista e vêm para o Brasil. Faz dessa nova terra, uma terra abençoada por seu coração agradecido. Vai trabalhar em uma fábrica em São Paulo, sem saber falar uma única palavra em português. Com muita luta, muito esforço, muito trabalho, conseguem comprar um terreno a prazo e pequena casa é levantada. Seu marido ao passar do tempo, morre. Mas, antes de morrer, dá uma ordem à mulher que se case com o irmão dele, para que consigam criar e educar o filho que já era um menino. Ela obedece e cria seu filho e tem outros mais com seu novo marido. Sobrevivência em terras estrangeiras.

O amor? Isso o tempo ensina...

Essa mulher, chamada Sophia, minha vizinha, que mal falava o português, que veio da Sibéria, era de um coração do tamanho de dois países: Rússia e Brasil.

Ela que nunca mais voltou – e nem queria – à terra natal, dizia:

– Minha terra? Ah, minha terra é o Brasil. Aqui quero morrer em paz!




• Dona Sophia, após contar toda a sua odisseia para mim, morreu alguns dias depois, no mesmo mês, logo após seu aniversário.



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La lista de Schindler
https://www.youtube.com/watch?v=t6E9hETZVSE





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