sábado, 6 de novembro de 2010

NÃO JUSTIFICA, TALVEZ EXPLIQUE

NÃO JUSTIFICA, TALVEZ EXPLIQUE
autor: Nilton Bustamante

Senti ciúmes, descarrilei.

Sempre depois do desastre procura-se saber o motivo, de quem é a culpa, afinal.

Sempre tem alguém pra abraçar a culpa pelo estrago, prejuízo, sofrimentos causados a si e a outrem.

Percebi que a culpa foi minha, somente minha. E de mais ninguém.

Tento, mesmo, compreender o que se passou nesses últimos acontecimentos, essas brigas. Algo que não acontecia comigo e agora veio assim, tão forte, tão desesperado, atitudes desesperadas, que me deixaram atônito. Logo eu que sempre pensei ser tão ponderado, maduro e atento com tudo, com todos. Eu não me entendi.

Acabei respirando fundo, e me entreguei sem reservas, sem policiamento. Deitei em meu próprio sofá. E estou analista de mim mesmo para tentar entender esses desatinos de forma sincera, pois não há outro jeito, as cenas que me vêm, são as de minha infância (deixa Freud fora disso). Minha mãe − costureira que se consumia para sustentar a família −, minha irmã − menina de tudo, 4 anos mais velha cuidava de mim, entre carinho e muitas revoltas pelo peso da responsabilidade, correndo atrás de mim, para levar-me à escola − , e eu, menino pés descalços, corpo sujo, palavras sujas de menino pelas ruas, de boca amarga, alma assustada e coração magoado, e um pai, funcionário público, literalmente ausente. Morávamos em um porão, onde havia um único cômodo, era quarto, cozinha, sala, quintal, oficina de costureira... Tudo em um único 4 x 4. E a humilhação não era morar ali, naquela condição,longe disso, mas sim porque não podíamos pagar aluguel aos meus avós paternos, donos do lugar, pois o que eles poderiam exigir de nós, cujo chefe da família, filho caçula deles, meu pai, havia sumido? Após longos meses ele aparecia por um dia, e depois se ia com o vento para outros meses mais, sem prover os alimentos do corpo e nem de nossas almas. Estávamos sitiados no porão, nos escondíamos, tremendo de medo, medo da fome, medo do frio, medo da vergonha dos vizinhos, medo do invisível despejo. Anos após anos foram assim, com formigas na pia, e choque nas torneiras do banheiro que não se podia encostar com o chuveiro ligado.

E minha mãe fazia vestidos lindos, bordados, moldados a talento, suor e lágrimas. Eu brincava com meus brinquedos: miçangas e vidrilhos colorindo meus sonhos, e tubos vazios de linhas que se tornavam soldadinhos, linhas que se foram em cada peça desenhada sobre os corpos das freguesas, as quais muitas ainda não pagavam, simplesmente "esqueciam" e alegavam um problema financeiro qualquer e ficava tudo por isso mesmo. Aproveitavam da situação, da fragilidade da costureira esquelética, sem voz ativa pra nada. Já não tinha coragem nem de reclamar, já havia comido as próprias palavras por causa da fome. E eu me afundava no tanque cheio de água para ficar ali, o mais que podia, o mais que aguentasse sem respirar, ficar no silêncio, fundo de oceano no mundo em que criava a cada dia, a cada manhã e que a noite vinha arrebanhar.

Minha avó paterna, doce flor, filha de espanhóis, por anos, enlouquecida, gritava pelo quintal, chorava a morte do filho de 12 anos levado pela terrível epidemia do tifo, em São Paulo, nos trazia algum alimento, algum pacote de macarrão escondido por debaixo do vestido, sem que ninguém visse ou notasse, pois seria mais um motivo de acusações e brigas por outras personagens mais.

Logo cedo, muito cedo para mim, menino de tudo, a rotina mudou. Meses e meses de creche das freiras, na Casa Verde, foram verdadeiros dias de tortura. Minha mãe tinha que ir trabalhar fora. Tinha que buscar algo melhor. Arrumou emprego na oficina de costura, de uma senhora grega, judia, no bairro do Bom Retiro. Acordava com o orvalho da madrugada, ia a pé e voltava com o sereno da noite. E eu me esgoelava, me descabelava, pois o medo de minha mãe também ir e não voltar me apavorava e eu me revoltava dia após dia. E eu fugia, e eu dava trabalho. A rua, pelo menos para mim, era menos sofrida que minha casa. Eu fazia de tudo para chamar atenção. Eu gritava e xingava meu medo, o medo do abandono.

E os anos foram se passando – quem sabe um dia escrevo com maiores detalhes, exorcizo de vez? Quem sabe escrevo raízes do ódio?

Nessas semanas atrás, esses acontecimentos entre você e eu, me chamaram muito atenção. Muita mesmo. Talvez esses fragmentos que relatei agora me acompanham desde então e eu nem percebia. O fato é que eu fiquei uma vez mais apavorado de ficar sem a pessoa que eu amo. Eu não sei lidar com a indiferença, com o possível abandono. E eu me revoltei, fugi, como antes, tempos do agressivo menino, fiz de tudo para chamar a atenção. Troquei os pés pelas mãos. Talvez ainda não cresci.

Longe de contar uma história triste, estou tentando entender a mim mesmo... o que se passa comigo, e, claro, o que se passa com você, porque um dia você e eu dissemos as coisas mais lindas, as juras mais sentidas, e, depois, brigamos esperando que o outro parasse a disputa. E a disputava se esticava, não terminava... Qual é o nosso medo, se a cada música doce que toca, desmente nossa distância?

Estou tentando saber melhor dos meus medos e inseguranças. Estou procurando crescer, me entender.

Sim, não justifica, mas talvez explique.

Deitei no sofá com meu bicho de sete cabeças e sem querer matá-lo, odiá-lo, estou tentando amá-lo.

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bicho de sete cabeças
https://www.youtube.com/watch?v=twtCjEriMA8

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