sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

"HUM HUM"



HUM, HUM
Autor: Nilton Bustamante

Pelo jornal um anúncio tentador: “Quatro dias em Paris”. A indústria do turismo a todo vapor.
Os preparativos começam com minha máquina de calcular despesas e possibilidades. Em um encontro de números, fico convencido.

Chegou mesmo a hora. Velha Senhora, poeira antiga, terá as solas dos meus pés. Quatro dias, um final de semana prolongado.

Um “bate e volta” mais ousado.

Eu que gosto tanto de escrever, preciso daqueles ares. Fantasia ou não, quem não precisa, afinal?
Fico entregue, meu coração acelera, não me espera, segue viagem... Vou atrás. Avião, imigração, hotel. Tanto faz. Quando dou por mim, chego às escadas da Basilique du Sacré-Coeur, Montmartre.
Turistas mil, mil faces, mil sapatos e tênis, de mil poeiras de terras diferentes; pessoas caladas, diante do homem que toca sua harpa enquanto a música parece sair pelos seus dedos, em troca de algumas moedas... Uns ficam parados, outros não conseguem. Uns tentam, mas pelo visto não conseguem mesmo entender o que a melodia traz. O homem da harpa suspira pelo olhar...

Respiro Paris! Sinto Paris, finalmente!

Quase não posso me controlar. Depois de tantas saudades, eu que nunca havia visto Paris – já sofria –, agora, toda, toda, toda em meu abraço.

Não sei se por eu estar na terra dos poetas, pintores, músicos e amantes – artistas dos corações –, meus olhos são levados por engano a um sorriso despreocupado. Sim, só pode ser engano. Um engano que está se repetindo. Não consigo deixar de olhar lá perto-longe a mulher-menina com suas duas tranças, cada qual tocando os ombros como se fossem pra lembrá-la que há juventude, há o que se experimentar nessa vida de tantas noites longas e dias curtos...

Uma menina-mulher, com ares de quem sabe o que quer. Lenço colorido em volta do pescoço. Braços cruzados balançam o corpo regendo a canção que sai dos dedos do homem e sua harpa mágica.
As orelhas à mostra, quem sabe a espera de ouvir o primeiro, ou mais um, e mais um, e outro mais... Pecado.

Um impulso – ah, esses impulsos que nos arriscam o pescoço –. Fico alinhado, noventa graus, bem defronte dela. Fico na torcida por meus olhares vazarem o homem músico, entre nós. Fico plantado feito soldado, posição de sentido, caçador camuflado... Pra falar a verdade, nem queria olhar pra essa menina, essa mulher; francamente, esses truques são tão antigos, tão indecentes... Mas, algo aqui é mais forte.

Não consigo parar de mirá-la entre os vãos das cordas que vibram. Cada toque dos meus olhos, toques dos dedos nas cor das da harpa, arco e flecha, a emoção da música e do querer, do desejar.

O templo principal, basílica, continua imponente. Indiferente.

Talvez comigo seja diferente, talvez tenha então a absolvição dos levantes dos hormônios e do meu coração...

Na primeira distração, brumas em meus olhos, menina-mulher de tranças não está mais em minha visão. Foi-se. Não me atentei, nem percebi. Corri escadaria acima, melhor visão e nada. Não era para me sentir assim, mas fiquei triste. Eu havia me acostumado tanto, tanto com aquele semblante sorrindo, feito pêndulo, feito marcador de tempo, das batidas, de um lado ao outro, acompanhando talvez o balanço do seu próprio coração...

Moulin Rouge não te quero hoje, pelo menos hoje, não... Não quero sorrisos plásticos, não quero, não quero... Quero gente de alma e labirintos. Alguém que não seja todo de mentiras, que não seja todo de verdades ensaiadas.

Caminho sem pressa pra chegar. Caminho sem mesmo querer chegar. Afinal, é só seguir pra lá e pra cá... Tudo pra mim é novo.

Ando, ando, ando... São tantas coisas pra ver. Recuso-me andar com mapas. Como são os brilhos dos olhares das pessoas daqui?

Suave toque em meu ombro direito. Volto, com a neura de turista que pensa que será roubado na próxima esquina. Minhas pernas não sustentam meu peso, um frio sobe relâmpago em minha espinha.
Nada menos que aquela menina de tranças que tocam, gentis, seus ombros. Ela sorri e diz qualquer coisa, que não consigo entender – ai, meus santinhos franceses, deem uma ajuda aqui –. Olhando bem, ela não é nada nada menina; é completamente mulher. Mas, o que importa isso agora? Sorrio amarelo, coração disparado, e estico minha mão à dela. Sinto a maciez delicada e gélida. Nossas mãos prendem-se, enroscam-se mais que o de costume das primeiras apresentações; isso faz-lhe recuar e esconder a mão atrás dos cabelos.

Surge leve sorriso feminino para amenizar qualquer embaraço...

Sinalizo com meus dedos, faço ponte entre meus olhos aos olhos dela, e imito o homem da harpa. Fiz a entender que eu a vi naquele lugar, há pouco. Ela abre o sorriso mais lindo que meu olhar já pousou. Ficamos nos encarando e rindo. Algumas vezes confusos, outras vezes querendo continuar sendo mesmo assim.

Fizemos um ao outro um convite para andarmos... Aceitamos.

Viva a mímica internacional! Afinal, somos seres humanos norteados pelas mesmas leis naturais.

Ruas, alamedas se achegam como se fossem velhas conhecidas minhas.

Ela fala tudo pra mim em Francês; eu, em Português.

Rir é o jeito. Algumas vezes tentamos repetir o que um o outro acabara de falar... É muito engraçado. E eu me pergunto: o que é isso? Devo estar sonhando...

Os nossos olhos se olham ao mesmo tempo e repetimos “Hum hum”, e lá vem outra explosão de risos. Tudo é motivo para rir (risos são excitantes).

Loucura, duas pessoas em Paris, por Paris, que não se conhecem, por uma empatia qualquer decidem andar juntas pra todo lado, conversando normalmente, quer dizer, quase normalmente, como se fossemos muito conhecidos um do outro. Cada qual em sua língua-pátria. Quem ver ou ouvir vai ficar sem entender. Se é que eu estou entendo alguma coisa!

Minha mão sente outra vez a delicadeza e o frio. Sua mão me leva até um automóvel estacionado. Ela abre a porta e faz sinal pra mim. Claro, eu estava adorando tudo aquilo. Fiquei imaginando como seria Jota Quest cantando em Francês! – maluquice minha –. E por falar em maluquice, essa francesa deve ser completamente maluca por confiar em um estranho e estrangeiro, assim. Ou serei eu mais louco ainda? Logo mais chegamos à Rue Mouffetard Market. Parece filme da sessão da tarde, sessão coruja, todas as sessões. Estou flutuando. Cada cantinho dessa rua é visitado: fromagerie, boucherie, degustações de ostras, vinho branco, café expresso... Depois, Ile Saint-Louis, Notre-Dame, Rue Saint-Honoré com suas lojas de moda, bijuterias; Musée Du Quai Branly, com suas mil máscaras e cores; Rue de Rivoli, Hotel Meurice – um luxo só –, andar por seus salões como quem não quer nada, uma grande e gostosa molecagem ficar andando por tudo aqui e ir embora, rindo. Logo mais, Eifell, vimos um casal se beijando, minha francesa ficou um pouco vermelha – percebi assim –, corremos para um grande carrossel com suas luzes e sons, nas imediações – claro, sessão criança não poderia faltar.

Chegamos ao rio Seine e um providencial beataux – acho que li Chevalier – a nos esperar, já 7h30 da noite; os raios do sol em seus últimos suspiros, nuances, silhuetas pelas margens eram nossas distrações... Eu a olho cada vez mais encantado. Sentamos nas bordas do barco que desliza pelas águas seculares. Ela está de um lado, eu do outro. Ficamos nos olhando, olhando, olhando.
Já está quase totalmente escuro. Meus olhos fixos antes secos, agora, pequeno vapor, sentem formar uma lágrima. Ela está percebendo e se aproxima. Senta-se bem ao meu lado. Pega minhas mãos e junta às suas. Ficamos assim, quietos, se olhando dentro dos olhos, enquanto o barco vai seguindo o seu destino... E o meu? E o meu, meus santinhos franceses?!

Ao fundo dá para ouvir um acordeon. A noite fica mais francesa.
Incrível. Isso aqui é tudo verdade mesmo? Ela encosta sua cabeça em meu peito, fica imóvel (e eu mais ainda, quase não respiro), pensando sabe-se lá o quê. Tenho receio agora em imaginar.

Puxo sua mão e a convido para dançar. Já que havia música, o barco passando sob as pontes, a noite sempre é convidada amiga. Nossos passos quase não saem do lugar. Tudo muito lento. Talvez não desejamos que o tempo leve embora esse sonho bom. Posso ouvir o seu coração. Na certa ela ouve o meu também. Ela passa sua mão macia em meu rosto. Abre meus lábios. Brinca. Sorri... Sem deixar que os olhares saiam um de dentro do outro... Um beijo, o primeiro beijo, suave encostar de lábios estrangeiros. Um calor, um frio, um desejo que nem sei explicar. Pego suas tranças e a trago pra mim, novamente, o beijo, outro beijo e mais e mais... Procuro soprar alguma palavra doce... Ela procura soprar alguma palavra doce... Só nós podemos entender essa déclaration dos corações, mas podemos docemente sentir.

Fico entregue, sigo com as águas, com a correnteza. Ela faz seus caminhos, me leva para seu pequeno prédio. Sabíamos, sem nada dizer, o que nos esperava. O lugar todo muito antigo. O elevador é daqueles de porta pantográfica. Um charme só. Nunca um elevador demorou tanto para chegar ao destino. Ela para diante da porta. Pega as chaves. Hesita. Olha pra mim. Algo intimamente a convence. Acende os dois abajures; o suficiente para iluminar toda a sala. Livros e mais livros. A maioria arrumada, alguns jogados. Ela me deixa a vontade no sofá. Liga o som. A música do disco não poderia ser mais apropriada. Ela some para dentro do apartamento. Eu me levanto e vou à pequena sacada. Carros passam. Pouco barulho. Sua voz tão doce arrisca “Hum hum”... Basta isso, para rirmos. Ela chega com duas taças e duas garrafas de bordeux – ai, meus santinhos franceses, sim, mais uma vez, como bebem esses seus compatriotas, como bebem! –. Ela mostra-me suas coisas que mais lhe interessam. Lembranças, quadros, quadrinhos, vasos, plantas, e um pequeno cristal desenhado um nome. Soube aí, o seu nome – antes não me ocorrera em lhe perguntar –, Christine. E quando o meu ela pronunciou de uma forma que não vou me esquecer...

O meu nome primeira vez no som dos lábios dela. Esses delicados momentos, dos encontros, são para sempre, para sempre.

Vez ou outra eu arrisco um “magnifique!” só para vê-la sorrir mais uma vez.

Christine é filha de belgas. A menina-mulher que fica defronte a Basilique du Sacré-Coeur, Montmartre, balançando feito pêndulo, de um lado ao outro, acompanhando a melodia que saem das cordas, dos dedos do homem da harpa, aqui, agora, diante de mim. Encostamos nossos ouvidos um no coração do outro, brincamos com mais um “Hum hum”... Pego pequeno tapete e mais uma colcha, vou até a sacada e cubro a grade do parapeito. Christine entende o cenário, forra o chão da sacada com tapetes, cobertas e almofadas. Pegamos um pedaço grande de voil de uma cortina desmanchada – acredito que veio da lavanderia e estava para ser remontada – e colamos com pequenas fitas. Ficou uma cobertura, leve, suave, transparente, o suficiente para ficarmos deitados olhando a noite na sacada. Tiramos aos beijos nossas roupas, sem pressa, ofegantes sim, mas sem pressa.

Deitamos nessa pequena tenda oásis de deserto sem vizinhos, sem preocupações; somente a noite, luzes dos abajures, a música e dois corações estrangeiros... Dos calcanhares (e suas fraquezas) aos fios dos cabelos, tudo foi sentido, tudo foi permitido. Das mordidas, tudo foi devorado, tudo foi mastigado. Dos segredos, tudo foi dito, em nossas línguas, mas, tudo foi dito, tudo foi percebido, mais, mais e mais... E outra vez mais.

Os primeiros raios de sol ameaçam a penetrar nosso santuário.

A preguiça é maior. Ficamos até a manhã vir grande, primeiras brisas, abraçando nosso ninho, nosso canto tão generoso...

Dos três dias restantes, ficamos entre cafés parisienses, passeios pelo Siene, tomando vinho, comendo “coisinhas”, noites chocolate e tenda de amor madrugada em encontros cada vez mais estrangeiros. Pensando bem, todo ser humano é um estrangeiro do outro.

A cada dia que passava, sabíamos, em nosso íntimo, que o fim estava cada vez mais próximo.

Angustiante. Já não podíamos mais viver sem um ao outro. Já usávamos a mesmíssima escova de dente – era assim –; chegamos um dia a nos abraçar e a chorar muito. Emoção que meu coração não suportou segurar.

Meu voo já marcado; mostrei-lhe o dia e horário. Ela chorou uma vez mais. Entrou pro seu quarto e lá ficou. Não queria mais me ver. Eu da janela da sala à porta do quarto, em mil e uma caminhadas, passos de gato para não chamar atenção. Não sei o que fazer. Se ao menos eu falasse algo melhor que frases cortadas do dicionário...

No bloco de recados, escrevi meu endereço, meus telefones, meus e-mails, nome, sobrenome, tudo, tudo, tudo... Deixei escrito: CHRISTINE, “HUM HUM”, JE T’AIME!. E fui embora.

Nunca meus olhos choraram tanto, nunca meus passos ser perderam tanto. Ao mesmo tempo em que eu precisava ir, queria ficar.

O avião, os aeroportos, Paris – São Paulo, cidades de planetas tão diferentes...

Chego ao barulho que havia esquecido. Trânsito. Buzinas. Pressa e mais pressa. Tento me lembrar de tudo, o tempo todo, para não esquecer nada, nada, nada...

Os dias passaram.

Eu queria entender tudo aquilo. Não conseguia. Olhava a secretária eletrônica e nada. Como estaria a doce Christine?

Como estaria o meu amor estrangeiro? Meu amor dos ares e dos céus franceses, terra dos poetas, pintores, músicos e amantes – artistas dos corações –? Sessenta e dois dias se passaram desde minha chegada de Paris.

Eu contava, contava...

Eu caminhava pela calçada bem próxima à minha casa, suave toque, em meu ombro direito. Olho assustado para trás como quem tem a neura de que vai ser assaltado a qualquer momento.

Meu coração sai pela boca – não pode ser! –, um frio, sobe relâmpago pela minha espinha, minhas pernas não aguentam o peso do meu corpo... “Hum hum”.


......



Mon Ame Bohémienne

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