sexta-feira, 21 de maio de 2010

A GUERRA DAS BORBOLETAS


A GUERRA DAS BORBOLETA
autor: Nilton Bustamante

– Pega aquela azul! – grita em corrido som, um menino magricela e descalço.

Crianças explodiam em gritos sem a preocupação do silêncio. Não se importavam com o mundo. Aliás, o mundo para elas resumia-se naquele entusiasmo misturado pela aventura de serem competentes em suas caçadas, com as redes às mãos...
Num comércio pernicioso, homens que perderam a noção planetária (se é que algum dia possuíram) recrutavam crianças pelas habitações nas periferias das matas para caçarem borboletas. Usavam da destreza e da miséria dos inocentes.
Os pedidos chegavam de várias partes do país e do exterior. Os intermediários lucravam e não disfarçavam. A "doutrinação" feita pelos esquálidos ao pequeno exército era de tal maneira, que todos acreditavam ser tudo muito natural.

A natureza gemia com mais estes atentados.

E neste som de lamúria fez acordar um dos espíritos da floresta.

Atento passou a acompanhar os voos coloridos daqueles pequenos seres em "disparadas" entre redes hostis. Angustiado borboleteava, sem asas, ao lado das delicadas mariposas em torcida rasgada para fuga... Os pequenos insetos de pura singeleza adentravam cada vez mais à mata, na tentativa da preservação da espécie.

Algo precisava ser feito. Chegou-se ao insuportável. Pior que o dano na primitiva natureza, era a corrosão na natureza humana daquelas crianças em formação.
O espírito guardião teve a inspiração de polinizar os sonhos daqueles caçadores mirins. Todas as noites, visitava um a um. Deixava o pólen dos bons conselhos.
Percebia o espírito guardião, que ainda havia tempo para a salvação não só das borboletas, mas dos pequenos irmãos. Tudo estava conjugado.

Numa dessas missões de "polinização", deparou-se com uma flor mal cuidada. Sua experiência na natureza sabia que poderia ser uma linda flor para o seu meio, se recebesse melhor atenção. Passou a "borboletear" os pensamentos do pequeno magricela que possuía pequenas manchas nos braços.
Certa vez o missionário, representante das boas causas, apresentou-se em sonho ao pequenino.

– Olá, pequeno caçador.

– Você me conhece? – perguntou admirado, o menino.

– Sim, claro. Suas caçadas são conhecidas.

– Bem, isso mesmo, eu caço borboletas – o menino abriu um sorriso de satisfação.

– Sei, e para quê? – contornando o assunto o bom espírito.

– Ah! Para ganhar dinheiro. Os homens lá da cidade vêm para encomendar as borboletas, as cores...

– E o que você sente ao fazer esse trabalho?

– Eu gosto muito. Chego a ver em vez das borboletas, notas de dinheiro batendo asas. Prontas para pegá-las – respondeu tranquilamente, o pequeno.

Uma dor de decepção invadiu o instrutor das luzes.

Pensou nos homens que se tornaram cegos ao ponto de não distinguirem árvores, rios, animais, plantas, pessoas; somente o dinheiro que podem ganhar. Nada mais.
É o tiro assassino, é o fogo, é o mercúrio, é a erosão, é a poluição.
Devastação. Morte.

– Venha comigo, quero mostrar-lhe algo – ordenou ao menino.

Foi levado na presença de um homem, artista famoso, que fazia naquele momento um pedido de borboletas rosas, em extinção. Ao ser interpelado pelo espírito guardião, revoltou-se e respondeu secamente: – para que servem as borboletas?

– indicando sua enorme coleção que cobria toda a parede da sala principal da rica residência –.

Sem mais nada a fazer ali, o guardião das borboletas e o menino retornaram, em silêncio, planando sobre a mata mais alta.

O menino notou que seu interlocutor tinha manchas nos braços, semelhantes às suas.

De súbito, abriu-se um clarão com um sem-fim de "insetos lepidópteros noturnos, crepusculares", borboletas, borboletas mil. Cores vistosas: amarelas, pretas, mescladas, brancas, azuis, transparentes; tonalidades do pincel divino. Um espetáculo regido por Deus. Podia-se dizer que o cenário era um sonho, mas um sonho com poucas borboletas rosas.

Notando a presença dos dois visitantes, logo os cercaram em delicada recepção de boas-vindas.

O menino boquiaberto recebeu "hóspedes" que se alternavam em pequenos pousos em suas mãos, cabeça, nariz... Foi levado para visitar as ninfas (crisálidas), conhecer todo o processo de criação e transformação. Aprendeu sobre a importância delas na polinização, fecundação, e continuidade da vida na natureza e seus ciclos.

De repente, as borboletas começaram a morrer aos milhares, presas em troféus da morte feitos de acrílicos, quadros, gavetas com alfinetes... Em velocidade terrível, em dimensão outra, as flores não recebiam os grãos de pólen, e também pereciam; não havendo mais flores, deixaram de existir várias espécies de pássaros; deixando de existir os pássaros, uma grande quantidade de insetos cresceu incontrolavelmente e começou a devorar a floresta; não havendo mais a floresta, os rios secaram, os peixes morreram... Os homens padeciam esses horrores, e ao lembrar-se de sua família, logo viu que ela também não mais existia, nem pais, nem irmãos. Aqueles mesmos homens que faziam as encomendas dos tipos de borboletas para seus comércios, estavam secos, com suas notas de dinheiro nas mãos, em suas bocas. Caíam mortos. O dinheiro não mais havia significado ou importância. Entre os desgraçados, o artista famoso junto ao rodapé da parede que ostentava sua coleção. Ambos secos.

O menino magricela, aterrorizado, ainda teve tempo para perceber que as manchas na pele de seu amigo florestal, como as suas próprias, tornaram-se mais acentuadas.

Ao acordar, num sobressalto o pequeno "viajante" pulou da cama. Correu em direção do alçapão das borboletas da caçada de outros dias. Levou-o para fora de casa e libertou as coloridas mariposas que voavam atordoadas, mas livres.

Um grande alívio ao vê-las sumindo entre a mata. E seus pais vivos preparando o café da manhã...

No sono seguinte, recebeu um conhecido de última hora: o guardião das borboletas, que indagou ao menino:

– O que você ganhou ao soltar as borboletas?

– Consciência – respondeu o menino magricela, também se sentindo livre.
E assim, o guardião das borboletas pôde dormir o sono das crianças.

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