domingo, 2 de maio de 2010

PRIMEIRO AMOR



PRIMEIRO AMOR
autor: Nilton Bustamante  (em desdobramento da alma)

Qual é, afinal, meu melhor sonho?
Qual é o filme que minha vida insiste em assistir?
Sim, é uma insistência magnética, que orbita meus sentimentos.
As mesmas imagens de um passado juvenil.
Chego a não entender essa ilusão, esse primeiro amor que me escraviza desde sempre. Vivi outros amores, assisti a outros luares; a seiva do meu êxtase sangrou muitos desejos. E o meu "primeiro amor", como estará ela? − pergunto a mim mesmo, com a ideia fixa.

Muitos anos já se passaram, afinal.

Nas voltas que eu dei pela vida, e as voltas que a vida deu em mim, encontrei meu amor maduro. Uma mulher que me arrasta para dentro de si pelo seu olhar gravitacional. Eu não me faço de rogado nessas horas, mergulho até meu fôlego não mais aguentar.

Tudo em ordem, no prumo, penso eu.

Então, meu Deus, ao me distrair vem acompanhar-me o primeiro amor
− espectro −, por quê?

Já ensaiei pegar a lista telefônica, visitar os amigos comuns do passado... alguma porta que seja para voltar e reencontrar o que ficou para trás. Mas não faz sentido. Analiso. Vejo que realmente não há necessidade. Nada há para construir ou para demolir.

Nesta noite de verão, os planetas estão realinhados de tal maneira − acredito eu − que a força cósmica do destino faz-me extremamente vulnerável, com os pés na lua e a cabeça nas marés.

Ouço uma voz chamando ao portão. Ao atender levo um choque estonteante:

− Nossa!

Nada mais, nada menos, é o meu "primeiro amor", sorrindo.
Nunca minhas pernas pesaram tanto.
Depois de conviver com o plasma durante anos, agora à minha frente, ela, sorrindo, sem falar, estendendo suas mãos.
Ela aqui, por quê? Eu estou tão bem com minha família, minha rotina...
Vou ensaiando o que vou dizer, articular alguma ideia; reparo que ela está exatamente igual, o tempo é um mistério...
Ao chegar bem próximo, ela olha por cima dos meus ombros e sai detrás de mim meu filho juvenil. Eles se abraçam amorosamente.
Meu Deus, o que está acontecendo?
Será vingança?
Como desvendar tal loucura?
Não, por parte do meu filho, não. Sempre nos demos muito bem. Somos verdadeiros amigos. Quanto a ela também sempre nos demos bem, até demais.
Não tenho coragem de fazer qualquer coisa para interferir.
Estou completamente aturdido.
O planeta começou a girar em maior velocidade em seu eixo. E eu fora do meu.
Não me contenho mais. Pego o carro e vou atrás do casal sem pé sem cabeça, para mim. Ela não me escolheu, por quê? Será que envelheci?
Ando pelas ruas do bairro. Olho pelo espelho retrovisor e detalho com olhar investigante o meu aspecto. Há em mim cabelos brancos ou rugas demasiadas?
O que devo fazer? Qual a desculpa? Quero olhar seus semblantes bem de perto. Quero comparar. Estarão felizes? Será sério?
Será que estão seguindo agora pelos mesmos caminhos do bairro que eu conheci tão bem ao lado dela?
Ah! lá estão eles. A história se repete.

Apresso-me e, no meio-fio, grito pela janela:

− Filho, não vá chegar muito tarde em casa − somente para dizer qualquer coisa.
Eles sorriram cortesmente.

A segurança deles me desequilibra mais ainda.
Saí em disparada fugitiva.
Como voltar para casa?
Estaciono, começo a andar.
É tarde. Não há ninguém pelas ruas. O que será que conversam?
Depois de passar pela calçada da igreja de São João Batista, viro a esquina e estaco como mula que vê assombração. Na outra esquina, parado à minha espera, meu filho, sozinho e sorrindo.
A juventude e a velhice em esquinas opostas.
O silêncio ficou maior ainda.
Eu entendi ali, naquele momento, que ele fizera opção por mim. Caminhamos um para o outro. Da sombra surgiu um parente meu que tem como peculiaridade a dificuldade de tomar decisões.

Disse ele, chorando:

− Temos que tomar decisões, sempre tão difíceis, por quê?
Ele sabia de tudo o que estava ocorrendo.

Respondi, aliviado, com súbito entendimento:

− Temos que tomar decisões sobre as questões que nos exigem muito mais. Não há como fugir. Cedo ou tarde tem que ser feito. "Encarar de frente." Assim temos a chance de amadurecermos. Exorcizarmos os fantasmas que nos acompanham ou aqueles que aprisionamos.
Nisto o meu "primeiro amor", bem próximo, chora copiosamente atrás de uma coluna da casa sem luz.

Aproximo-me. Tento ser gentil.

− Eu sei como você está se sentindo. Senti-me assim muitas vezes. Meu filho não quis ou não pôde ficar com você, e eu francamente agora penso como ele, da mesma forma, apesar do carinho que tenho guardado por você.

Preocupado em esclarecer, continuei:

− Não, não pense que é vingança, ou algo assim. Você foi importante para mim. Lembra-se quando começamos a nos dar os primeiros beijos? Quando ficávamos nos agarrando, rindo, olhando preocupados com a possibilidade de vir alguém... Foi minha primeira experiência.

Ela somente respondeu com os olhos: não se lembrava.
Isto me balançou barbaramente.
Como não se lembra? São meus melhores momentos. Momentos eternos durante todos esses anos...
Pude observar, então, que nem sempre os "meus" melhores momentos foram os "nossos”. Afinal, o ser humano tem capacidade de sentir o individual, o particular, segundo sua carga de emoções psíquicas, emotivas e interesses próprios...
Ela chora ainda.

Preocupado em diminuir aquela angústia, disse-lhe:
− Veja o cinema onde íamos namorar. Estão demolindo o prédio para transformá-lo em estacionamento. Mesmo isto ocorrendo continuarão existindo na lembrança as boas tardes de domingo. O que passamos de bom ao espírito, as gentilezas, os caminhos, as energias permanecem de alguma forma. Para uns que passarem por ali será apenas um estacionamento, para outros será o antigo cinema com gosto de namoro.

Pela primeira vez ela falou, com certo ar de arrependimento:
− Eu rasguei todas as fotos suas e as poesias que você fez para mim.

Respondi de forma desprendida (não sei como):
− As fotos podem amarelar, as vistas se cansarem para continuar a leitura... Por isso, o ato do presentear, do doar-se é o bom presente, a sensação que fica e não se perde. Do nosso amor, como o prédio do cinema que foi ao chão, permanecerá a sensação das boas tardes de domingo. Fique tranquila, da minha parte está tudo bem.
Ela não chorava mais.

Dirigi-me então ao meu filho:

− Com sua ajuda pude exorcizar o meu "primeiro amor". Passa a ser uma boa lembrança, não mais uma doença. Estou curado.

E próximo a abraçá-lo disse ao seu ouvido, sem nenhum sentimento de egoísmo:

− Obrigado por você ter-me escolhido.

Enquanto concretizávamos os nossos abraços, uma estupenda surpresa. Tudo estalava em meu interior. Eu estava abraçando a mim mesmo. Contrariando a lei da Física, dois corpos tomavam o mesmo lugar no espaço. Lembrei-me que nem mesmo tinha filho assim desta idade − Freud não estava ali para explicar. − O meu filho, na verdade, era eu em minha juventude, que agora se unia com o meu ser envelhecido. Tornava-me assim uma unidade mais forte e experiente. O passado e o presente se uniam sabiamente. Precisei eu mesmo ir buscar, resgatar, lá dentro de mim, trazendo à tona, para me salvar, para me curar, o meu "eu dos anos incríveis", dos cândidos sentimentos, juntamente com o meu "primeiro amor". Vieram me socorrer, pois como náufrago inconsciente eu os havia agarrado e os levado ao fundo da angústia, por não aceitar que as pessoas e as situações simplesmente mudam.

Eu que vivia dicotomizado tenho a possibilidade de viver, agora livre, plenamente, o meu melhor filme, o meu melhor sonho: o meu presente.



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canção: PRIMEIRO AMOR (melodia: Marcos Assis / Letra: Nilton Bustamante),
interpretação Denise Dalmacchio

http://www.youtube.com/watch?v=_T_6-g_4Flc]




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