sexta-feira, 30 de abril de 2010

AS VISÕES DA CEGUEIRA




AS VISÕES DA CEGUEIRA autor: Nilton Bustamante Hoje meu filho vai a campo. É o seu primeiro dia na rua. Não está só. Sua orientadora, da LARAMARA - Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual, e a bengala branca serão seus olhos; sua visão. Meu filho é deficiente visual; não enxerga nada. Fico de longe. Acompanho tudo. Meu coração está entalado na garganta. Eu percebo sua insegurança. − Cuidado, meu filho, o buraco à sua direita na calçada − grito dentro de mim, num sobressalto. Seus passos desorientados procuram novas rotas, tentam chegar à Índia, China, América, Lua... Ficam logo depois da curva da próxima esquina. Uma mão segura a bengala e a outra busca apoio no ar, no espaço vazio; talvez para ele há algo concreto que o ajuda; certamente a mão de um anjo. A bengala movimenta-se para frente e para os lados, quase sincronizada. A orientadora vai um pouco atrás; séria, diria até pesada no andar, na fisionomia. Ele está indo rápido demais, observo. Outro dia ele me perguntou como era a cor azul? Levantei-o com meus braços erguidos em ângulo reto e corri pelo quintal de casa. Disse-lhe depois que a cor azul é a cor do céu, onde os pássaros voam sentindo a mesma sensação de frio na barriga como ele em meus braços a sustentá-lo no ar da liberdade. Hoje pela manhã, antes de vir ao Instituto, tenso, ele me confidenciou que precisava muito do “azul”. Oh! Meu Deus! Ele acaba de cair. Minha lágrima cai junto. Aquela imagem terrível, vendo meu filho no chão tentando se erguer, parte meu coração em milhões de pedaços. − Levante-se, meu filho, se não vamos ficar juntos caídos − outra vez grito em silêncio. Ele é perseverante. Sua imagem, sua fisionomia, fica ainda mais inocente, ainda mais frágil. Não sei como pude tirá-lo um dia do meu colo. Quando eu quero ficar com ele, só com ele e entrar em seu mundo converso com os olhos fechados, ou se noite apago as luzes e passo a “enxergar” as mesmas coisas, parece que o diálogo se torna fácil, pois compreendo melhor o que ele diz nesses momentos. E lá vai a bengala, sua espada, lutando contra a noite; o escuro que antecede a descoberta da luminosidade. Cada obstáculo desviado, cada passo avante, cada “touché” de sua bengala, um pouco mais de luz para seus olhinhos, diferentes dos meus. Agora ele está indo bem. Acalmo-me. Não caiu mais. A voz orientadora de sua instrutora ecoará em ondas para toda a vida, em seus “labirintos”; a mão de seu anjo o manterá equilibrado. Nas vezes em que caiu, meu filho aprendeu as diferenças entre ser confiante e em pé nos caminhos da vida ou se esparramando em obstáculos professores. Vejo seu cansaço provocado pelo esforço, mas percebo um ar de felicidade indisfarçável. É interessante conhecer as cores por “dentro”. Na escuridão, na ausência de luz, pode parecer imponderável. As cores não são só perceptíveis com o calor, ou ausência, que emitem. São mutantes. Vão criando vida e formas que dão ideia não da pigmentação, mas sim da “vida e movimento” que produzem. Semanas atrás, meu filho, anjo de Deus que agora “voa por instrumentos”, correu de mãos dadas com sua mãe e eu num campo plano e gramado. Corremos, corremos o mais que pudemos. Ríamos todos crianças livres e depois nos abraçamos num abraço triplo e assim permanecemos nos beijando felizes. Minha mulher pegou nas mãos de nosso filho e pousou-as em suas próprias faces e disse-lhe: − Percebe este calor? Esta agitação? Esta, meu filho, é a cor vermelha que está agora em nossas faces. E assim foi para cada cor, um exemplo cheio de vida e tato. Eles estão voltando, a instrutora, meu filho e seu anjo. Deram a volta ao quarteirão. Foi a primeira vez dele, desta maneira. Não são somente os olhos que conseguem ver, o meu coração de pai está vendo o meu pequeno que se agigantou pela sua vitória particular, silenciosa... − Eu estou vendo, estou vendo, meu filho está agora todo “azul”. . ________________________________________________ N. A.: esse texto nasceu após eu passar pelas ruas da Barra Funda, em São Paulo, onde, com o coração apertado, presenciei um menino, deficiente visual, aprendendo, com dificuldade, a andar pelas calçadas, com a orientação de sua instrutora da associação Laramara. Coloquei-me no lugar do pai daquela criança.

Um comentário:

  1. O que os olhos não veem, o coração sente.
    Todo o meu carinho...pra vc e seu anjinho.

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