segunda-feira, 5 de abril de 2010


TEMPLO DOS SONS
Nilton Bustamante

1923, maio, a mulher que trazia na alma a menina prodígio que encantou plateias na Casa Levy, Clube Germânia, Salão Steinway, na cidade de São Paulo, com mil peças musicais nos ouvidos e nos dedos segue em direção ao piano, calma, serena, poucas palavras, como sempre foi seu costume.

O piano, ah, o piano! Um Steinway, preto, reluzente, desse mesmo ano, por si só a imponência, a grandeza do templo dos sons, muito mais rico que os templos com ouro em seus altares. Na primeira fila os pais, nas mesmas roupas de gala, nos mesmos trejeitos, nas mesmas ansiedades e olhares orgulhosos ao verem a filha mergulhar no mar de notas herdado de Chopin, Beethoven, Brahms... A temporalidade não mais existia. Se estavam em outra dimensão não importava, naquele momento a eternidade.

A pianista, mulher vestida com comedimento, cabelos ondulados, olhos profundos, queixo redondo, um frescor envolvente de feminilidade, faz o público ficar hipnotizado. O mundo, agora, tem um centro, único foco: Antonietta Rudge. Arruma-se no banco inerte, ao mesmo tempo em que homens e mulheres não ousam se mexer para não correr o risco de importunos ruídos, mínimos que fossem. A acústica, atenta à primeira nota, se faz presente. Mãos delicadas de anos de preparo, toques de amor, exercem decididos rompantes e o mundo, nesse instante, eterno momento, câmera lenta, para Antonietta Rudge tudo era abstração, outro cenário, outro mundo, outro sentido. Nada mais, somente o sagrado no templo e sua maior devota levando em sua oração notas sonoras para cada ouvido capaz de ouvir, para cada lágrima capaz de chorar, para cada coração capaz de emocionar-se...

E tal foi a força, e tal foi a energia, esse amor, essa magia, que no salão elegante, não mais ninguém cabia. Atrás do elegante piano preto, altar das orações que Deus presenteou aos homens, Brahms, Beethoven, Bach e Chopin já estavam cada qual brilhos nos olhos e perfumadas flores nas mãos.

...

Antonietta Rudge playing Chopin Mazurka op. 63 n. 3

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário